Às vésperas de seus 103 anos, Oscar Niemeyer se lança como compositor e faz música com Edu Krieger
RIO - Internado no fim do ano passado para cirurgias na vesícula e no intestino, Oscar Niemeyer procurava uma forma de driblar o tédio do leito de hospital. O homem que - a despeito de ter desenhado Brasília e outros marcos da arquitetura brasileira, aqui e espalhados pelo mundo - continua trabalhando às vésperas de seu 103 aniversário escolheu lançar-se num novo ofício: o de compositor. Começou a esboçar uma letra, seu enfermeiro Caio Almeida, uma melodia, e nascia assim o samba "Tranquilo com a vida", mais tarde finalizado por Edu Krieger - a canção será lançada digitalmente pela Deck no máximo até o dia do aniversário do arquiteto, 15 de dezembro.
- Não sei como encontro tempo para ficar brincando - diz Niemeyer, rindo. - Mas minha música é uma besteira, uma coisinha divertida, nada importante. Sempre fui muito ligado a esse pessoal do samba e quis fazer alguma coisa louvando o homem da favela.
Empolgado com a parceria, Krieger, ao contrário, não vê a canção como "uma bobagem":
- Independentemente do que aconteça na minha vida, já defini que não terei parceiro mais ilustre. Afinal, a importância histórica de Niemeyer é incomparável. E, além disso, acho fantástico ele estar nascendo como sambista agora, sendo mais velho que Noel Rosa e Adoniran Barbosa. Compor com ele é como estar envolvido por aquela aura mítica dos meus mestres do samba.
A proposta da parceria chegou a Krieger via Caíque Niemeyer, bisneto do arquiteto - namorado de uma amiga do compositor e admirador de seu trabalho. O samba estava parado havia alguns meses. Niemeyer e Caio - em sua primeira incursão no terreno - não sabiam como continuar a canção. Caíque então sugeriu o parceiro ao bisavô. Sugestão aceita, ele mandou a letra e o princípio de melodia a Krieger.
- Não mexi em nada da letra, fiz questão de deixar cada palavra que Niemeyer tinha escrito. Finalizei a melodia e fiz a harmonia em dois dias. Depois, gravei uma demo, para ele conhecer. A receptividade foi enorme, ele me convidou para ir ao seu escritório e passamos algumas horas juntos só cantando o samba. Mais tarde, fiz a gravação definitiva chamando amigos da Lapa como Alessandro Cardozo (cavaquinho), PC Castilho (flauta), Fabiano Salek >ita<(percussão), Elisa Addor e Alice Passos (coro). Soube depois que ele mostra a gravação a cônsules, todos os visitantes ilustres que recebe lá - conta o artista de 36 anos, 66 a menos que Niemeyer. - Ficou com cara de samba do subúrbio, simples, direto, tipo Zé Luiz do Império, algumas coisas do Martinho.
A letra de "Tranquilo com a vida" é fiel às ideias que o comunista Niemeyer tem defendido ao longo de sua trajetória. Enquanto aproveita os prazeres simples da vida, o personagem, um morador da favela que canta em primeira pessoa, se dá conta das injustiças do mundo. No fim, conciliatório, diz não culpar os ricos e imagina um futuro com igualdade social.
- Está ali tudo o que ele vem dizendo nas últimas décadas. Um olhar mais atencioso para os pobres, melhor distribuição de renda... Isso só aumenta o valor histórico da música - avalia Krieger. - Ele se coloca como um personagem morador de favela, nunca perdeu a ligação com esse olhar. E, o mais bonito, continua esperançoso. De forma simples, os versos contêm uma esperança de que a diferença de classes se atenuará e as pessoas se reaproximarão. Não há o rancor de outras canções que trazem um tom político. É uma canção de protesto, mas que oferece flores à sociedade. É o reflexo de uma sabedoria de 103 anos.
As palavras de Krieger sobre o papel da experiência na visão de Niemeyer ganham mais força quando se ouve sua única tentativa anterior na área da composição. Em 1962, ele se arriscou no "Samba do arquiteto", no qual conclamava seus colegas de profissão a se juntarem à revolução: "Mas se você é honrado/ Não deve se conformar/ Ponha a prancheta de lado/ E venha colaborar/ O pobre cansou da fome/ Cansou de ter que esperar/ E vai partir para a luta." Bem menos mulato que "Tranquilo com a vida".
Como o próprio Niemeyer lembra, sua relação com o samba vem de muito tempo. São dele os cenários de "Orfeu da Conceição" - primeiro trabalho de Tom Jobim e Vinicius de Moraes juntos. É dele também o desenho do Sambódromo. Sobre o carnaval, aliás, ele já disse que "a escola de samba deveria servir como veículo de protesto, para cantar os anseios da gente pobre". E Chico Buarque afirmou que pensa sua música tendo a obra de Tom e Niemeyer como alvos: "Quando minha música sai boa, penso que parece música de Tom. Música de Tom, na minha cabeça, é casa do Oscar."
"Tranquilo com a vida" será mostrado pela primeira vez num palco no próximo dia 20, quando Krieger se apresenta no Teatro Rival.
- Gostaria muito de ter a presença de Niemeyer lá - diz o artista, que planeja que o samba seja lançado também em versão física. - Talvez façamos depois uma tiragem em CD ou mesmo em vinil.
Apesar de não pensar em dar continuidade à carreira de compositor, Niemeyer diz que tem estado bastante próximo da música:
- Comprei um piano para o meu escritório. Às vezes reunimos amigos lá, fazemos uma batucada. Para esquecer um pouco o mundo, que está uma merda - diz, antes de completar, otimista como a letra de seu samba: - Mas vai melhorar.
Fonte: oglobo.com
Foto: Alfredo Alves
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