RECRIAR OU RESGATAR VÌNCULOS
José Wolf¹
Com o gancho temático “Arquitetura em transição” aconteceu de 1 a 4 de junho, no Centro de Convenções do Recife, o 19º Congresso Brasileiro de Arquitetos promovido pelo IAB nacional e o IAB/PE, em homenagem ao arquiteto carioca-pernambucano Acácio Gil Borsoi. O acontecimento factual passou, mas a reflexão continua.
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Transição? Do latim transitione, pode significar mutação, transformação ou passagem de um tempo, fase e período para outra fase (fazer). Ou, simplesmente, além-da- ação. Ou seja: ação e pensamento, teoria, cultura. Movi+mento + ação. Parâmetros e fenômenos que se constroem ao longo dos tempos.
Aliás, em sua palestra, o aplaudido holandês Ole Bouman convocou os arquitetos a transformarem palavras em ação, advertindo, porém, que as novas respostas não serão, com certeza, as mesmas de outros tempos.
Marco Antonio Borsoi, ao apresentar o projeto do Museu da Arqueologia de Suape, PE, defendeu uma arquitetura capaz de somar a memória do passado à construção do presente, em busca de um futuro sustentável e desejável. A exemplo de um dólmen, de uma “mesa de pedra”, que abrigava rituais e cultos aos deuses, que nos poderá proteger, também, de nossa fragilidade frente à fragmentação e desacralização da era global , que continua colocando de escanteio o passado e a história.
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Mobilização - Com a presença de arquitetos, urbanistas e historiadores europeus,brasileiros, como o britânico Joseph Rykwert, o italiano Bernardo Secchi, o holandês Ole Bouman, a inglesa Justine Fox, o festejado Pritzker Paulo Mendes da Rocha , além do chinês Yung Ho Chang e do avis rara latino-americano paraguaio Solano Benìtez, o encontro mobilizou mais de três mil participantes inscritos vindos de todas as partes do país, sendo 1.200 de Pernambuco.
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Competência e ausência – O evento surprendeu pela competência de sua organização pilotada pela guerreira Vitória Régia de Andrade, ao lado do centrado Bruno Ferraz e o indomável Roberto Montezuma, além de uma competente equipe de apoio.
Alguns, como o argentino Ignacio Arsol, ex-estagiário do escritório de Oscar Niemeyer, lamentaram a ausência de outros nomes latino-americanos, a exemplo dos jovens Alejandro Aravena e Alberto Mozó, do Chile, que poderiam aquecer a pauta temática. E, também, do explosivo sertanista e cosmopolita Expedito de Arruda, cujo nome foi relembrado por muitos, em meus contatos, com participantes como o jovem Davi de Lima e a combatente Tereza Simis Borsoi.
A lamentar, também, a ausência do prof. Orlando Villar, da Universidade Federal da Paraíba, reponsável, apesar de tantos desafios, do Encontro de Arquitetura e Engenharia/PB, que teve a coragem de trazer para o Nordeste arquitetos como Mario Botta, Àlvaro Siza, Eduardo Souto Moura, Enrique Norten, Juvenal Baracco etc.
Corações e mentes - Com uma arquitetura inventiva e criativa, num país estigmatizado, reciclando sistemas construtivos tradicionais, como o do alvenaria, o paraguaio Solano Benítez encantou corações e mentes dos jovens, entre os quais, o jovem paraibano Oliveira Jr., responsável pelo elogiadíssimo blog arqPB, que, a duras penas, vem divulgando a arquitetura nordestina tão esquecida pela mídia do Sul.
Além disso, Solano deu exemplo de sensibilidade e humildade, ao falar em espanhol despacio(devagar), pedindo a ajuda da platéia quanto aos termos técnicos em português. Ao contrário de outros , de origem espanhola ou italiana, para a decepção do público, que preferiram apelar para o inglês.
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A cerimônia de abertura, com as palavras simpáticas de boas-vindas de Vitória Régia Andrade, presidente do IAB pernambucano, foi realizada na igreja Madre de Deus, no centro histórico do Recife. Durante a qual, o arquiteto carioca, agora cadeirante, Luiz Paulo Conde recebeu o colar de ouro do IAB, em meio a uma calorosa salva de palmas.
Ali, também, tomou posse o novo presidente do IAB nacional: Gilson Paranhos, de Brasília, eleito durante o 134º Cosu, prometendo um IAB mais participativo , em defesa da cidadania e do profissional de Arquitetura. E pela “carta de alforria”do IAB, com a aprovação do independente CAU-
Conselho de Arquitetura e Urbanismo, tantas vezes prometida, mas até agora...nada..
Diversidade - A grade do evento incluiu uma diversificada bateria de palestras, exposições, mesas-redondas, oficinas e apresentações da produção autoral de vários arquitetos, incluindo os paulistas Mario Biselli, Carlos Bratke, Marcelo Ferraz, Bruno Padovano Ovídio Pascual, o paraibano Gilberto Guedes, autor do novo edificío do Conselho de Medicina de João Pessoa (que foi capa da AU 158), o mineiro João Diniz, os pernambucanos Carlos Fernando Pontual e o filho do consagrado Delfim Amorim, Luiz Amorim, autor do livro “Obituário arquitetônico/Pernambuco modernista”.uma espécie de “Sociedade dos poetas mortos”de esquecidos arquitetos pernambucanos dos anos 40 e 50..
Momento mágico - Uma mesa-redonda histórica composta pelos arquitetos Marco Antonio Borsoi, Gilson Gonçalves, Fernando Diniz, pelo crítico Hugo Segawa e pelo jornalista J.Wolf, destacou a importância da obra de Borsoi no cenário da arquitetura brasileira.
Ao colocar a fita com a gravação de uma entrevista feita com Borsoi, nos anos 90, em meio ao silêncio de uma platéia de três mil participantes, muitos começaram a chorar. Sem dúvida, foi um momento mágico, inesquecível, reconheceu Nadia Somekh, da Universidade Mackenzie, ao cruzar comigo no võo 3505 da volta para São Paulo, pela TAM.
Desafios: passado versus futuro - Para onde, enfim, caminha a Arquitetura e a cidade do século XXI , reféns da globalização, da fragmentação e das fachadas cinematográficas sem vínculos com nossa realidade ?
Ao abrir a série de palestras, o historiador Joseph Kykwek, citando Vitrúvio, lembrou, que “a casa é uma pequena cidade e a cidade, uma grande casa”, mas cada vez mais distantes uma da outra em função das novas condições urbanas e sociais.”As pessoas já não dialogam mais com os edifícios nem os edifícios com as pessoas”, lamentou.
Passado? Ao apresentar o projeto do Museu Arqueológico de Suape, PE, em parceria com Tereza Simis Borsoi e equipe, como o franciscano Luiz Augusto de Assis, Marco Antonio Borsoi, a meu ver um dos teóricos não-acadêmicos mais brilhantes da Arquitetura brasileira atual (pois, ele faz e pensa, ao contrário de muitos acadêmicos), referiu-se ao dilema entre o passado e o futuro da era globalizada, fragmentada, que continua a virar as costas para os arquétipos em nome de um futuro sem identidade. O dilema entre a permanência, a história e o transitório, o fugaz.
“À idéia de um edifício para exposição arqueológioca – explicou – estamos propondo uma forma arquitetõnica que remonte às origens, à transformação do território em paisagem humana, de um espaço definido pelo grande mé- garon micênico. Ou seja: de um lado, o relato mítico, de outro, o discurso lógico, racional, da reconstrução da história”, para concluir:.
Se esquecermos da história, “podemos correr o risco de produzirmos uma arquitetura datada, com prazo de validade vencido”, advertiu..
Indagações - Enfim, no rastro dessa maratona cultural inesquecível de quatro dias, houve poucas respostas, mas restam muitas perguntas e indagações que, com certeza, com o tempo serão esclarecidas e respondidas. Por exemplo:
Quais serão, afinal, o papel e a função do arquiteto e da Arquitetura neste século, que chega a esta década marcado por tantas tragédias ecológicas, crises econômicas e incertezas? Como definir a responsabilidade social do arquiteto numa sociedade marcada, ainda, pela exclusão?
Qual o perfil de um escritório de Arquitetura, hoje: um promotor de cultura ou uma agência de negócios? E o Ensino: como repensar os modelos e currículos de Ensino de acordo com as novas necessidades e demandas do ser humano, como acessibilidade, ecologia, ergonomia, mobilidade urbana, habitação e qualidade de vida?
Como conjuminar a cidade formal com a cidade informal, a cidade oficial e a cidade real? Como se livrar das imposição do mercado imobiliário, que continua na realidade a ditar as regras das tendências arquitetônicas?
Qual a relação entre a Arquitetura formal e a virtual, o espaço físico e o digital?
Como resolver, enfim, o conflito entre desenvolvimento, economia, globalização, ecologia e sustentabilidade, que implicaria novas formas de se fazer, projetar, ver e viver?
Talvez, a resposta esteja no recado de Ole Bouman, ao defender, que no meio dessa parafernália de objetos, produtos, dejetos, propagandas, promessas e invenções cibernéticas e da ideologia do consumo, a grande transição seria “ resgatar e recriar novos vínculos”. Vínculos com o lugar, com a cidade, a Arquitetura, com as pessoas e a natureza, o passado, o presente e o futuro. E, ao projetar, se inspirar nos problemas das cidades em lugar de temê-los ou evitá-los! Afinal, somos a favor do quê?
Dessa atitude, poderá surgir, sem dúvida, uma nova era de transição, na qual os arquitetos voltarão a ser novamente aprendizes! A exemplo de Acácio Gil Borsoi, um mestre eternamente aprendiz!
1. José Wolf é jornalista, co-fundador da Revista AU e atual editor do boletim do IAB-SP
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