Fabiano Sobreira (*)
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Arquitetos do "star system" contratados sem concurso para o projeto de um equipamento cultural com valor estimado em 300 milhões de reais (e valor de projeto estimado em 20 milhões), sob o pretexto da "notória especialização"[1]; políticos que se apóiam na cultura da genialidade arquitetônica para justificar monumentos indesejáveis[2]; concurso de "desenvolvimento urbano" que premia arquitetos com i-Pods[3] ; concurso internacional no Brasil que muda as regras posteriormente à entrega dos trabalhos[4]; falso concurso para eleger a imagem do país em exposição internacional[5].
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Não faltam exemplos (apenas para citar os mais recentes) para ilustrar uma simples – e histórica – constatação: a ausência de uma política pela qualidade da arquitetura pública.
A média de concursos de projeto no Brasil é de 5 eventos a cada ano, e entre estes poucos há ainda aqueles que sequer deveriam receber a denominação de "concurso", no sentido clássico do termo, que nos remete aos conceitos de democracia, transparência, ética e qualidade arquitetônica.
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Enquanto isso, a França realiza 1200 concursos a cada ano[6], a Suiça realiza 200 e outros países como a Espanha[7] e os países escandinavos (Finlândia, Noruega, Dinamarca e Suécia) nos dão demonstração de uma cultura de qualidade arquitetônica baseada nos concursos de projeto.
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Ópera de Oslo, na Noruega. Prêmio Mies van der Rohe 2009. Projeto de Snohetta, resultado de concurso realizado em 2000. Um dos exemplos do sucesso da política de qualidade da arquitetura fundamentada nos concursos de projeto.
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Qual a razão para o sucesso e freqüência do sistema de concursos em alguns países e a sua instabilidade e escassez em outros ?
Se analisarmos o histórico dos países que fizeram do concurso um instrumento cotidiano para a administração pública, observaremos que a principal razão para o seu sucesso é a existência de uma política pública baseada na qualidade arquitetônica como suporte à instituição do concurso. Nesses países a regulamentação dos concursos de projeto é apenas uma pequena parte de uma política maior, baseada na consolidação da arquitetura como objeto de interesse público.
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Conjunto habitacional Teglværkshavnen, construído em Copenhague, na Dinamarca, e que foi objeto de um concurso em 2003. Projeto do escritório Tegnestuen Vandkunsten. Prêmio Alvar Aalto 2009. A Dinamarca tem se destacado pela produção arquitetônica contemporânea, em grande parte resultante de concursos promovidos pela administração pública do país.
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Afinal, a construção de uma política pública não se limita à aprovação de leis, mas depende também da criação e consolidação de uma cultura. Desde 1993, por exemplo, a legislação federal brasileira (Lei 8666/93) define o concurso como "forma preferencial para a contratação de projetos pela administração pública". Essa preferência, no entanto, não se converteu em prática; e a realidade é a que nós conhecemos.
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Mas como construir tal política pública ?
Antes de tudo, é preciso reconhecer que esta preocupação não é nova e que existem importantes contribuições e reflexões já iniciadas, tanto no Brasil quanto do contexto internacional, e que precisam ser estudadas e discutidas. O maior erro que se pode cometer é tratar do assunto como se não houvesse todo um histórico de experiências (tanto de sucessos quanto de insucessos). Incluímos nesse repertório tanto as contribuições de profissionais e instituições que atuam ou atuaram diretamente na promoção de concursos (coordenadores, consultores, júri, promotores, concorrentes) quanto daqueles que tratam do tema como objeto de interesse acadêmico.
Projeto do escritório francês archi5, vencedor do concurso internacional para o planejamento urbano do bairro Nya Årstafältet, em Estocolmo, na Suécia. O país tem se destacado pelos concursos internacionais relacionados à arquitetura e ao planejamento urbano.
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É preciso pensar em uma política pública para a coletividade e não para os arquitetos e urbanistas; ir além dos interesses corporativos. O concurso de projeto deve ser apresentado não como um sistema que interessa à profissão, mas como um instrumento necessário à coletividade para garantir a desejada qualidade do espaço público. A valorização e o reconhecimento da profissão neste caso seria uma conseqüência natural, e não o objetivo em si. Sabemos o quanto o concurso de projeto é importante para a consolidação e o desenvolvimento da profissão. Mas isso não é suficiente para justificar o interesse público sobre o tema.
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A Espanha realizou diversos concursos para os equipamentos esportivos das Olimpíadas de Madri 2016. O projeto acima é um dos exemplos. Trata-se de projeto de um velódromo, de autoria do escritório P01 Arquitectos, vencedor de um dos concursos promovidos pela administração pública espanhola.
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Seria necessário provar para a administração pública e a coletividade que o sistema é vantajoso e que é fundamental para o atendimento do interesse público.
A questão, então, seria:
Por que os concursos de projeto são interessantes para a administração pública, e conseqüentemente para a coletividade ?
Apresentamos algumas considerações preliminares que, entre outras, poderiam ajudar a construir a argumentação necessária:
- O concurso prioriza o julgamento qualitativo, em detrimento do julgamento quantitativo ou pessoal – é preciso lembrar que a qualidade arquitetônica está diretamente associada aos princípios de economicidade e sustentabilidade, e não necessariamente à ostentação e à monumentalidade (não ficaria surpreso se uma pesquisa de opinião pública revelasse que estes dois últimos conceitos predominam na visão do "cidadão comum" sobre a arquitetura pública);
- Os princípios que orientam os concursos de projeto são os mesmos que fundamentam a gestão pública: isonomia, transparência, economicidade, publicidade, impessoalidade, democracia, entre outros;
- O concurso permite a avaliação e a legitimação pública de uma decisão sobre espaços e equipamentos que exigem grande investimento de recursos e que têm grande impacto na coletividade;
- O concurso de projeto amplia o repertório de opções e no processo de decisão sobre a melhor solução, para um contexto específico.
Mas nesse processo de construção de um argumento em prol do concurso de arquitetura e urbanismo é preciso, antes de tudo, estar disposto a reconhecer e gerenciar os conflitos de interesse em potencial e, em alguns casos, as contradições que desafiam a popularização do sistema. Provavelmente o concurso não faz parte do cotidiano da administração pública (apesar da preferência expressa em lei) por que existem preconceitos sobre o sistema que provocam insegurança entre gestores e profissionais, deixando dúvidas sobre as vantagens e eventuais desvantagens para a administração pública.
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É bom lembrar que o concurso de arquitetura e de urbanismo, apesar de ser construído a partir de um conceito universal (em que o julgamento sobre a idéia é mais importante do que julgamento sobre o profissional), pode ser colocado em prática de diversas formas. Essa diversidade de procedimentos associados aos concursos pode levar caminhos distintos (por vezes controversos), e despertar conflitos entre os que promovem, os que concorrem e os que julgam. Afinal, na gestão pública e mesmo entre os profissionais a definição sobre o melhor formato para uma eventual "regulamentação dos concursos de arquitetura e urbanismo" não é consensual[8]. Daí o constante debate em torno de alguns dilemas[9]:
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- Concurso aberto versus concurso restrito, com base em pré-qualificação;
- Concurso em uma fase, completamente baseado no anonimato versus concurso em duas fases, com a possibilidade de quebra de anonimato na fase final;
- Concurso aberto sem remuneração aos profissionais versus concurso restrito, porém remunerado;
- Júri composto exclusivamente por arquitetos e/ou urbanistas versus um júri que inclui representantes da instituição promotora e da coletividade;
- Concursos baseados em estudos preliminares versus anteprojeto;
- Formato único de concurso versus um repertório de formatações, a ser aplicado conforme o objeto a ser projetado.
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Esses dilemas não são novos, nem restritos ao contexto brasileiro. As opiniões e os argumentos são diversos, e refletem não apenas pontos de vista técnicos e conceituais, mas também os eventuais conflitos de interesse. Portanto, seja qual for o modelo (ou repertório) a ser seguido, é importante que a resposta não se limite a uma pesquisa no universo da profissão – pois corre-se o risco de mais uma vez consolidar-se o interesse corporativo, que não necessariamente corresponde ao interesse público.
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Finalmente, é essencial que o processo de construção de uma política nacional de qualidade da arquitetura e do urbanismo seja baseado nos mesmos princípios que fundamentam o próprio concurso, que são a confrontação pública de idéias, a transparência, a impessoalidade, a publicidade e a ética. E nesse processo de construção, reconhecer a diversidade de interesses que está em jogo e a experiência de cada grupo de atores, combinando a experiência prática dos profissionais, a perspectiva política e regulamentar da administração pública e a cultura reflexiva das instituições acadêmicas. Os concursos de projeto, enfim, devem ser tratados como instrumentos de uma política maior, que tenha como fundamento a qualidade e o interesse público da arquitetura e do urbanismo[10].
[8] É preciso lembrar que certos profissionais que se encontram bem estabelecidos no mercado vêem no concurso uma ameaça à reserva de mercado por eles estabelecida e ao eventual monopólio de contratações que eles detêm na administração pública.
[9] Sobre os dilemas associados aos Concursos de Arquitetura, ver Rohn (2008) – Architectural Policies and the Dilemmas of Architectural Competitions.
[10] Este ensaio é uma síntese da conferência e do artigo intitulado "Concours d'architecture et d'urbanisme et les conflits d'intérêt dans la gestion de l'espace public", apresentado pelo autor na École d'architecture – Université de Montréal, em maio.2009.
(*) o autor é Arquiteto e Urbanista, PhD, Analista Legislativo da Câmara dos Deputados (Seção de Acessibilidade e Projetos Sustentáveis – Núcleo de Arquitetura) , professor e pesquisador no Dept. de Arquitetura e Urbanismo do UNICEUB, em Brasília. O presente texto foi desenvolvido como parte da pesquisa de pós-doutorado desenvolvida pelo autor no Laboratório de Estudos da Arquitetura Potencial (LEAP) - École d'architecture de l'Université de Montréal (2008-2009).
Originalmente publicado em: http://concursosdeprojeto.org
Originalmente publicado em: http://concursosdeprojeto.org
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