Arquitetura e Engenharia protegidas por lei
Luciana Patella
Muitos Arquitetos e Engenheiros podem não saber, mas todos seus trabalhos estão protegidos por leis que envolvem o direito autoral, em especial pela Lei nº 9.610/98, que rege o tema no País. A proteção se estende do simples esboço da proposta até a obra já executada. Mas o tema não é simples, algumas polêmicas envolvem a questão, principalmente no que se refere às alterações em projetos sem o consentimento do autor. Também são problemáticas da área, os casos envolvendo plágio ou reprodução não autorizada de projeto arquitetônico ou de engenharia. A Lei de Direitos Autorais, em seu sétimo artigo, inclui no rol das obras protegidas os “projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência”. A Lei 5.194/66, que regula o exercício das profissões de Arquitetura, Engenharia e Agronomia, também adota a proteção dos direitos autorais, além de vincular a autoria do projeto à responsabilidade técnica do autor.
Buscando esclarecer os profissionais, tanto da área tecnológica, quanto do meio jurídico, sobre o tema, o Eng. Civil e Advogado Leandro Flôres lançou o livro Direito Autoral na Engenharia e Arquitetura, que traz as principais doutrinas e legislações da área, além de quase 100 jurisprudências sobre o assunto no Brasil. Ele comenta que em sua pesquisa encontrou muitos episódios em que o profissional perdeu uma batalha judicial por desconhecimento de seus advogados sobre a Lei do Direito Autoral e suas correlatas quando aplicadas à Arquitetura e à Engenharia. “Notei muitos julgamentos em que, provavelmente por desconhecimento dos engenheiros e arquitetos e dos advogados, não foram enfrentados os melhores argumentos para resguardar os direitos das partes e, por vezes, o julgamento foi baseado em artigos de leis não específicas. Por exemplo, tem uma jurisprudência em que o juiz decidiu com base na Lei de Imprensa. Fez analogia com esta lei porque não encontrou nenhum artigo que se aplicava diretamente ao caso e, claro, porque o advogado da parte não apresentou o fundamento jurídico mais apropriado”, analisa.
Ao autor de uma obra são reservados os direitos morais e patrimoniais. Os direitos morais são relacionados com a paternidade e integridade da realização. Ou seja, o direito que o profissional tem de ver seu nome sempre vinculado a sua obra e a segurança de que a mesma não sofrerá alterações sem o seu consentimento. A advogada especialista em Direito e Propriedade Intelectual Adriana Hamilton Ilha ressalta que os direitos morais são inalienáveis e irrenunciáveis, não havendo hipótese que permita a sua transferência a outro titular. Os direitos patrimoniais, por sua vez, são aqueles que garantem ao autor dispor de sua obra. “Ao contrário dos direitos morais, os direitos patrimoniais são passíveis de alienação, cessão, transmissão visando à exploração do seu trabalho”, explica a advogada. Ela ressalta que um dos preceitos para que uma obra seja protegida é sua originalidade, no que explica: “Original é a obra que resulta do trabalho intelectual do autor e não se confunde com novidade, isto porque o autor, ao criar, ao expressar sua criatividade, pode estar baseado em temas antigos, referencias e experiências pessoais ou informações genéricas”.
Projetos alterados
Segundo Leandro Flôres, os casos de reformulação em obras ou projetos são onde residem as maiores divergências. “Grande parte do meu livro trata sobre as alterações sem o consentimento do autor, porque as leis que envolvem a questão são um tanto imprecisas ou incongruentes e há muita divergência entre doutrinadores e juízes. Relato casos em que a Administração Pública contratou de forma direta, por inexigibilidade de licitação, o profissional para elaborar o projeto de reforma de uma edificação, por entender que só o autor pode alterá-lo”. Ele dá como exemplo o projeto arquitetônico para a reforma do Estádio Mané Garrincha, em Brasília, necessário para atender às exigências da Fifa para a Copa de 2014, em que foi contratada diretamente, sem licitação, por R$ 1,6 milhão de reais, a mesma empresa responsável pela elaboração do primeiro projeto do local. Essa decisão foi contrariada publicamente por um grupo de arquitetos e pelo próprio Ministério Público. Mas, ele relata, a contratação foi validada pelo Tribunal de Contas, seguindo a corrente jurídica em que prevalece o direito do autor no trabalho.
As divergências que envolvem a alteração em projetos é também destacada pela advogada Adriana Ilha como a mais acirrada. “A solução deste problema não é simples e nem tem entendimento pacífico no meio jurídico. Há quem defenda que o direito de propriedade prevalece sobre o direito moral do autor do projeto. No entanto, este não é o entendimento majoritário”, alega. Leandro Flôres observa que todas as correntes jurídicas que versam sobre o tema concordam que, no mínimo, o autor tem que ser consultado antes de uma possível alteração em seu original. “Esse cuidado tem que ser tomado porque ele pode não querer mais ser vinculado ao trabalho, pode repudiar a autoria do projeto alterado.” O direito, expresso no art. 26 da Lei 9.610/98, permite ao autor da obra não ter mais seu nome ligado a criação depois das modificações terem sido feitas. Adriana explica que manter tal relação, entre a obra modificada e o autor que a repudiou, gera ao proprietário da edificação o dever de indenizar os danos provocados. Segundo parte da doutrina que resguarda o direito do autor, o profissional pode até mesmo pedir demolição da edificação para fazer novamente de acordo com o original.
Em seu livro, o advogado-engenheiro explora as duas opiniões jurídicas sobre a questão, mostrando que ambas as correntes são muito bem embasadas, o que gera mais complexidade à questão. A primeira doutrina apresentada é a que prevalecem os direitos do autor do projeto, a qual crê ser a alteração das obras sem anuência dos profissionais autores uma violação aos Direitos Autorais passível de indenização. A segunda, onde prevalecem os interesses do proprietário da edificação, acredita que o direito do autor se limita apenas ao repúdio ao projeto alterado. Adriana concorda com os primeiros. “A regra contida no art. 18, caput, da Lei no 5.194/66 é clara ao dizer que apenas o autor do projeto original poderá alterá-lo. Portanto, para realizar qualquer mudança, o mesmo deve ser notificado para que exponha seu interesse em realizar o trabalho. Apenas no caso de recusa ou impossibilidade do autor original do projeto em realizar as alterações é que outro profissional poderá fazê-lo, consoante disposto o parágrafo único do art. 18, que constitui a exceção”, detalha.
Quando o profissional realizador da obra concorda em executar a alteração, mas com valor de honorários superior ao que o proprietário se propõe a pagar, surge um novo impasse. De acordo com a advogada, este é um caso em que conflitam três direitos fundamentais: o de propriedade, o do consumidor e o do autor. “Havendo diferença de orçamentos para outros profissionais, estabelece-se o conflito proposto na questão, o qual, a meu ver, deve ser resolvido caso a caso. Se no caso o preço cobrado pelo autor do projeto original for maior, mas ainda estiver dentro da mesma faixa de preço dos demais profissionais, entendo que deverá ser respeitado o direito do autor do projeto original e a ele deve ser concedido o contrato para realizar as alterações. Por outro lado, se no caso o preço do autor original estiver discrepante do mercado ou das demais propostas, poderá ser invocado o direito do consumidor, sobretudo no que diz com a liberdade de contratar”, exemplifica.
Indagado sobre restauros em obras arquitetônicas, Flôres é da opinião que os autores do original não devem receber sobre o trabalho, caso não tenham sido contratados para o restauro, pois o mesmo se caracterizaria como manutenção. Sobre os bens tombados, ele cita artigo de Erika Bechara e Enrico Soffiatti, publicado pelo Instituto de Engenharia do Paraná, onde é sustentado que, em razão da criatividade e individualidade artística impressas nestes restauros, devem ser reconhecidos os direitos autorais dos elaboradores de projetos.
Plágios e reproduções
Pauta de matéria do jornal O Globo (18/11/09) um plágio arquitetônico envolvendo duas conhecidas livrarias é um dos exemplos recentes desta modalidade, que, apesar de pouco comum, é uma das lesões aos direitos autorais mais conhecidas pelos profissionais e leigos. Casos famosos incluem a substituição do Word Trade Center, onde os arquitetos Thomas Shine e David Childs brigaram judicialmente sobre a autoria do projeto. A disputa foi citada por reportagem da Revista IstoÉ (11/11/09). Segundo informações da matéria, em 2004, Shine acusou o colega de copiar o esboço do edifício Olympic Tower, apresentado em sua banca de mestrado da qual Chids era jurado, ocorrida em 1999, e apresentá-lo, com pequenas alterações, em substituição às Torres Gêmeas, sob o nome de Freedom Tower. A justiça norte-americana deu ganho de causa a Thomas Shine, mas por dificuldades em calcular seus danos morais encerrou o caso.
Leandro Flôres ressalta que, por suas pesquisas, a maioria dos casos de plágios confirmados são relativos a projetos ainda no papel, e ocorrem quando o profissional é chamado para realizar um projeto, mas não é contratado, e o proprietário utiliza da proposta para execução da obra por um segundo profissional. “Isso pode ocorrer mesmo quando o material é aproveitado parcialmente, omitindo a autoria das ideias originais”, afirma o engenheiro. Ele explica que o plágio não precisa ser idêntico para ser caracterizado, “pode ser apenas parecido desde que se possa comprovar a semelhança”. Uma decisão judicial considerada paradigmática por ele ocorreu no ano de 1991, quando o Tribunal de São Paulo determinou que fosse demolida a construção de uma loja, devido a sua similitude com outra do mesmo ramo comercial, pois considerou o caso um plágio arquitetônico.
Aqui no RS, o coordenador da Comissão de Ética do CREA-RS, Arq. Armando Rodrigues da Costa, relata que o plágio, principalmente de projetos ou laudos técnicos, é uma das principais demandas com relação ao direito autoral, mas destaca que essas questões não chegam com muita frequência à Comissão. “Mesmo que a eventual confirmação do plágio, acarretando penalidade de natureza ética, contribua para a busca de indenização decorrente da utilização indevida, não é comum os profissionais buscarem a reparação”, revela. Arq. Armando atribui isso a falta, por parte dos Arquitetos e Engenheiros, de esclarecimentos adequados sobre a matéria e dos meios existentes para a preservação das condições de autor, lamentando que a questão seja pouco divulgada nas escolas. “As entidades de classe eventualmente apregoam e salientam aspectos da ética relacionada ao direito autoral, porém o tema não tem o destaque que talvez devesse ter, especialmente para os Arquitetos, cujos projetos constituem seu principal foco de atuação”, diz o coordenador.
As reproduções de projetos sem devida remuneração são mais uma forma de ferir os direitos do profissional. É entendimento majoritário da doutrina jurídica de que quando o Arquiteto ou Engenheiro cede o direito patrimonial de projeto, este é para a construção de apenas uma unidade. E o quesito vale para reproduções em qualquer escala, incluindo miniaturas usadas como lembranças ou suvenires. “Em qualquer repetição da obra, de mesma proporção ou não, o autor teria que ganhar uma fração dos dividendos advindos das mesmas”, afirma Flôres. Fato expresso na Lei 9.610/98, que permite apenas a reprodução de obras em logradouros públicos por meio de pinturas, fotografias, desenhos ou procedimento audiovisuais.
Para prevenir situações envolvendo direitos de autoria, Arquiteto Armando acredita que o mais importante é cultivar o respeito permanente pelo trabalho alheio e desenvolver o apreço pelas profissões, “tarefa primeira das escolas e faculdades ainda durante o processo do aprendizado”. Também destaca a importância da interatividade e comunicação no meio profissional, tornando obrigatória a consulta sobre a existência de trabalho anterior para determinadas situações requeridas, ação, segundo ele, bastante incomum na atualidade e que inibiria grande parte das hipóteses de cópia de projetos e trabalhos técnicos. “Outras providências são imprescindíveis, como celebrar contratos entre as partes e proceder Anotação de Responsabilidade Técnica (ART), mesmo para estudos iniciais ou de viabilidade, que identificam o vínculo e a autoria”, recomenda.
Flôres aconselha aos profissionais terem conhecimento de seus direitos e buscarem trabalhar sob a vigência de contratos bem redigidos. Outra dica do advogado-engenheiro é o profissional criar o hábito de sempre, ao entregar algum trabalho a um cliente, obter um “recebido” do mesmo, com data, em uma via do projeto. “Tens que ter cópia dos teus projetos e alguma forma de vincular a data a eles. Esses são requisitos fundamentais para prova de eventual futuro plágio ou usurpação de projeto”, declara. E justifica o cuidado: “Todo o esboço de um projeto, mesmo que seja num guardanapo de papel é protegido”.
Nota
1. Luciana Patella é Jornalista e Assessoria de Comunicação do Crea-RS
Fonte: www.confea.org.br
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