sábado, 8 de maio de 2010

Os desafios de uma megalópole

Candido Malta Campos: o urbanista aponta soluções para São Paulo

Entrevista concedida a Revista E, nº 107, de abril de 2006, disponível no Portal do SESC/SP

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Doutor em Planejamento Urbano e professor universitário, Candido Malta Campos Filho nasceu em 1936, em São Paulo, tem uma íntima relação com a cidade e conhece bem seus problemas. "Venho acompanhando [a cidade] como planejador nos últimos 30 e tantos anos", conta em entrevista concedida à Revista E em seu escritório no bairro dos Jardins, em São Paulo. Campos Filho foi secretário municipal de Planejamento de 1976 a 1981, nas gestões dos prefeitos Olavo Setúbal e Reynaldo de Barros, e garante, baseado em sua experiência, que todos os problemas da metrópole têm solução. "A força do atraso político é que beneficia, em curto prazo, o entupimento do espaço urbano." Durante a conversa, o urbanista falou ainda de soluções para a habitação, da preservação das regiões de mananciais de São Paulo e da polêmica do pedágio urbano. A seguir, trechos.


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A cidade de São Paulo tem salvação?


Tem. Cada um dos problemas tem solução. O primeiro, que considero mais grave, é o excesso de veículos. Quando há um feriado ou estamos nas férias de janeiro, nós percebemos que São Paulo melhora. Isso porque há uma redução de 30% do número de veículos em circulação. Então, o sistema viário fica bem proporcionado, pode-se dirigir rápido de um lado para o outro. A solução para o excesso de veículos seria, à primeira vista, a ampliação do complexo viário. Só que, fazendo as contas, isso custaria o dobro do valor da ampliação do metrô. Isso exigiria, por exemplo, a implementação do pedágio urbano, para arrecadar o dinheiro. O que eu proponho é que o dinheiro arrecadado por esse tipo de pedágio seja convertido para a construção do metrô, que custaria menos à cidade.

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Mas seria necessário que se cobrasse uma taxa de quanto?


Em Londres são cobradas 5 libras nos pedágios urbanos, o que dá uns 8 dólares [cerca de 17 reais]. Para São Paulo, eu proponho 1 dólar, o que daria para construir uns 150 quilômetros de metrô, criando uma malha parecida com a de Londres e de Paris - o que possibilita que se vá de metrô a qualquer lugar.

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E quanto uma obra dessas custaria?

Custaria por volta de 15 bilhões de dólares. Dentro disso há também o fato de que para construir um metrô na Europa se gasta um terço do que se gasta aqui - mas essa é uma questão que teria de ser aprofundada. Em São Paulo, com o pedágio de 1 dólar, para chegar a 15 bilhões de dólares em 20 anos, seria necessário arrecadar 750 milhões por ano. Para isso seria preciso que a cidade tivesse 3,5 milhões de carros em circulação, cada um pagando 1 dólar. E hoje em São Paulo existem quase 6 milhões de carros cadastrados e pelo menos 3,5 milhões deles andam pelo chamado centro expandido da cidade. Com isso se equaciona a solução, desde que os cidadãos aceitem pagar pelo pedágio urbano. Muitos dirão que aceitariam se o transporte coletivo fosse eficaz, porque aí eles teriam a alternativa de não pagar o pedágio. Mas para isso também existe saída, algo que já foi feito em Porto Alegre. O uso de microônibus de qualidade, com ar-condicionado etc. Isso valeria para o centro expandido.

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O senhor acha que São Paulo reluta muito para implantar soluções criativas e fáceis?

Neste momento, por exemplo, há uma dificuldade tremenda no sistema de transportes, porque o relacionamento da prefeitura com os empresários de ônibus é difícil. Se as negociações estivessem em termos mais civilizados, nós já teríamos implantado o sistema de microônibus. Porque está provado que se pode fazer, é viável, em Porto Alegre já funciona há dez anos. Então, por que não se faz aqui? A dificuldade está no relacionamento com o empresariado de ônibus.

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E o senhor considera o trânsito o maior problema da cidade de São Paulo?

É o grande problema. A viabilidade da cidade depende da comunicação, em termos econômicos, sociais etc. Quer dizer, o fundamento da cidade é esse. Se ele é posto em xeque pelos congestionamentos, a cidade perde sua competitividade. Para aumentá-la, temos de ter a solução. Competitividade é fundamental, sem ela o futuro da cidade, como base econômica e social, está em risco.

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Qual é seu parecer em relação a esse cenário se as autoridades não buscarem tais soluções?

Uma decadência social e econômica da cidade. Existe um "custo São Paulo" decorrente da má organização do espaço e do sistema de circulação, um problema de planejamento urbano. Ou seja, essa relutância dos políticos é muito perigosa para nós.


Essa idéia do pedágio urbano é, digamos, polêmica, não?

Eu não tenho medo de falar do pedágio urbano. Sempre me respondem que ninguém concordaria com a cobrança, mas então me apontem outra solução! Dizem também que o dinheiro arrecadado seria desviado. Realmente esse risco sempre existiu e sempre existirá. Mas nós temos de nos precaver, exigindo certas condições para aprovar o pedágio. Por exemplo, que seja aberta uma conta bancária que tenha transparência, para que qualquer cidadão possa fiscalizar a entrada e saída de dinheiro através da internet. Com esse tipo de medida, acho que podemos ter confiança de que não haverá desvio de dinheiro.


Há quanto tempo o senhor acompanha os problemas de São Paulo?

Eu sou nascido aqui, minha família é paulistana de longa data, e venho acompanhando como planejador toda essa trajetória, nos últimos 30 e tantos anos. E minhas previsões foram frustradas, quando, por exemplo, eu disse que não seria mais aceitável o nível de congestionamento do tráfego. Fiquei surpreendido de haver aceitação. As pessoas têm uma tendência muito grande a aceitar as coisas, mas há uma perda real. Não é só uma questão psicológica, de você aceitar ficar preso no trânsito. Existe um limite, porque seu tempo está sendo perdido ali. E qual será esse limite? Os paulistanos estão suportando o aumento das más condições de trabalho e de vida. Acho que vai chegar um momento em que não vai ter mais como, aí as pessoas irão embora de São Paulo - alguns já estão indo e muitas empresas deixam de vir. Já há perda, é difícil mensurar isso.


 
As enchentes seriam o segundo ponto?

Sim. As enchentes se dão nos vales, e historicamente nós ocupamos os fundos de vale com um grande número de avenidas. O sistema viário de São Paulo está baseado, fundamentalmente, em vias de fundo de vale. Parece que estamos conseguindo reduzir as enchentes do Rio Tietê e do Pinheiros, devido aos trabalhos de canalização e às retenções das águas de chuva pelos piscinões. Estamos melhorando. A solução está, em curto prazo, nos piscinões, e eles estão sendo feitos. Agora, estão sendo feitos corretamente? Em parte. Houve uma falha técnica no plano de macrodrenagem, o plano não previu o futuro. Os piscinões adotaram, como área impermeabilizada urbana, a área do ano-base, que foi de 1994 [durante a gestão do prefeito Paulo Maluf]. O plano é muito bom, mas tem de ser revisto, em função do crescimento urbano que não foi previsto. Então, é possível que se tenha de aumentar esses espaços. A gente vê com certa surpresa que os feitos na Pirajussara não coíbem suficientemente as enchentes causadas pelas chuvas. Talvez porque estejam subdimensionados. Para corrigir isso, é necessário refazer o plano e recalculá-lo, o que poderia ocorrer sem grandes dificuldades.


E o problema habitacional?

Existe na verdade um problema grande de habitação que está ligado também à água e aos mananciais. É uma disputa, os mananciais serão usados como fontes de água ou serão destinados à habitação? Há quem diga que seja possível a convivência da urbanização, fundamentalmente da habitação, com a preservação dos mananciais. No meu entendimento, esse é um falso diagnóstico. Tem gente que acha que, com saneamento básico, a ocupação urbana não prejudicará o manancial. Isso é falso em dois pontos. Primeiro porque, quando se implanta o loteamento, as chuvas levam para os mananciais o barro que esse loteamento gera. Esse barro vai para a represa, assoreando-a. O outro ponto é que a urbanização joga nas ruas metais pesados e outras substâncias tóxicas, como aquela fuligem que o pneu solta quando está desgastado. Essa fuligem é levada pela chuva e vai para a represa; isso não é retirado pelo esgoto. Não dá para canalizar.


Ou seja, em pouco tempo teremos problemas sérios com o abastecimento de água. A cidade está se preparando para essa dificuldade? A Sabesp estaria até buscando água em Minas Gerais.

Já faz 30 anos que a Sabesp busca água em Minas Gerais, é o sistema da Cantareira que busca, no sul de Minas. A atual situação é muito crítica, nós estamos roubando água de Campinas e de Piracicaba. Há uma disputa pelas águas das bacias do Jaguariúna e do Jaguari - os rios que estamos trazendo para São Paulo, quando eles deveriam abastecer toda aquela região de Campinas e Piracicaba. E por causa da invasão de áreas próximas dos mananciais, onde são feitos loteamentos clandestinos, estamos perdendo a água da Região Metropolitana de São Paulo. Os cidadãos que não têm recursos para comprar ou alugar uma casa são obrigados a invadir algum lugar. Por isso, deveria haver uma política habitacional mais potente. As 50 mil unidades habitacionais que são produzidas por ano pelo governo do estado não atendem à demanda do crescimento anual.

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O que o senhor tem a dizer sobre a reforma urbana?

Fui um dos que batalharam pelo estatuto da cidade desde 1978, quando era secretário do Olavo Setúbal - uma lei federal que estabelece as regras do que seria a reforma urbana. Hoje, temos um arcabouço jurídico para enfrentar a reforma urbana. Temos a possibilidade de instituir o IPTU progressivo no tempo, para quem retém terrenos para valorização. A finalidade desse instrumento é o barateamento do preço dos terrenos para todos, mas, é claro, quem for mais pobre vai ser mais beneficiado. O plano diretor foi aprovado, mas postergado. Por outro lado, a outorga onerosa, um mecanismo pelo qual as construtoras pagam uma taxa para poder construir prédios acima de um determinado limite, está sendo aplicada, e ela inibe a especulação.
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Historicamente, como o senhor vê o ponto a que chegamos? Quando as coisas começaram a sair do controle?

A partir dos anos 30, quando a metropolização de São Paulo se intensificou. Até o início dos anos 20, São Paulo era uma cidade pequena. Depois disso, teve início uma expansão enorme de loteamentos periféricos. Fotos aéreas e mapas mostram claramente a dispersão da mancha urbana. Vieram os ônibus, permitindo o loteamento em locais distantes. No caso do Centro de São Paulo, o plano de avenidas do Prestes Maia [Francisco Prestes Maia, engenheiro, que foi prefeito da cidade de 1938 a 1945 e de 1961 a 1965] facilitou a expansão do núcleo central; entretanto, não tinha zoneamento. Então, a cidade crescia sem controle efetivo do uso do solo, o que gerou um superadensamento. O zoneamento foi instituído tardiamente em São Paulo, somente em 1972. Nos anos 70, começou o esvaziamento do Centro porque as pessoas estavam fugindo dos congestionamentos. É aí que o centro se desloca do Centro histórico da cidade e vai para a Paulista. Agora, nós estamos vivendo a complicação do tráfego nessa região. Não há muito para onde fugir, alguns foram morar em Alphaville. Mesmo assim, pegam trânsito para ir trabalhar. Hoje, estamos numa posição mais favorável, o governo do estado assumiu a tarefa de rever o plano de transporte metropolitano.
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Quais são as forças que seguram a modernização e regulamentação da cidade?

A força do atraso político é que beneficia, em curto prazo, o entupimento do espaço urbano. Grupos sociais, que não têm visão de futuro, constroem muito mais do que se deveria, o que não se vê em cidades de Primeiro Mundo. Em todos os estratos sociais acontece isso. Por exemplo, quando um cidadão tem um terreno e faz um "puxado" contra a lei, ou um empresário constrói vários andares a mais, também contra a lei, eles estão tendo um benefício específico, mas prejudicando a cidade. Quando pressionam para que a lei não seja bem elaborada, pior ainda. Agravando isso, temos um posicionamento, como estilo de vida, favorável ao automóvel. Mas não medimos as conseqüências. Então, esse modelo, que entendo ser norte-americano, pressupõe uma estrutura viária norte-americana. Morei na Califórnia quando fazia mestrado em Berkeley, área metropolitana de São Francisco, e conheço muito bem como eles organizam o espaço urbano. O sistema viário que existe nessas cidades e os espaços para estacionamentos não se comparam com os do Brasil. Não deveríamos adotar o padrão norte-americano de uso dos automóveis porque não temos espaço para fazê-los andar e estacioná-los. As pessoas têm de perceber isso. A solução seria acabar com a indústria automobilística? Claro que não. Mas seria, sim, basear-se no modelo europeu, por exemplo. Lá, eles compram um automóvel e usam pouco. A solução dos congestionamentos das grandes cidades está no uso do transporte coletivo.


Todos nós acabamos contribuindo para esse estado de coisas. Porém, nas campanhas políticas, a população não discute isso. Por que a escamoteação da discussão?

É o medo de enfrentar as opiniões contrárias estabelecidas. Precisa-se do esclarecimento das coisas, do jeito que está não dá para continuar. Existem muitos políticos que não têm informação técnica. Por isso, eles não têm capacidade própria de análise e dependem de técnicos, como eu, que possam assessorá-los e levantar argumentações. Tenho exercido esse papel para muitos candidatos. Percebo que, quando eles vão enfrentar a opinião pública, os marqueteiros dizem que o tema é polêmico, que é melhor não comentar, porque há um grande risco de perder votos. Tudo isso de que estamos falando, pedágio urbano, invasão a áreas próximas aos mananciais etc., são assuntos, segundo os marqueteiros, que tiram votos. Então, as campanhas políticas não contribuem em nada para o esclarecimento da população. A mídia também tem dado pouco espaço, esse tipo de medo envolve a própria mídia, que receia perder leitores, ouvintes, telespectadores e anunciantes. Tenho defendido, para superar essas barreiras, o uso de jornais de bairro. Mas é difícil porque são publicações que enfocam assuntos de áreas restritas. Às vezes conseguimos levantar uma problemática mais ampla, em um ou outro veículo. O Diário do Grande ABC, por exemplo, é um jornal que tem dado espaço.


Por que os urbanistas falam tão pouco sobre esses problemas?

A mídia reduziu o espaço. Tínhamos um espaço muito mais amplo até uns cinco anos atrás. Há também muitos urbanistas que só fazem jogo de bastidor, não dão nenhuma entrevista porque preferem fazer o jogo do poder e de quem está no poder. Não têm uma visão comunitária e social, ou, se têm, escondem a opinião com medo de perder trabalho. Mas há muitos que falam. Não sou o único. Talvez tenha me dedicado mais a essa tarefa que outros. Não perco, de fato, nenhuma oportunidade. Com esse afã de tentar contribuir, publiquei dois livros, Cidades Brasileiras: Seu Controle ou Caos, (Studio Nobel, 1992) que tem todo esse conceito básico, e Reinvente Seu Bairro (Editora 34, 2003). Estou tentando levar essas idéias às lideranças de bairros para que elas, aos poucos, desenvolvam uma consciência crítica para pressionar a sociedade, o poder público e a mídia.


Como o senhor sente o empenho de lideranças da sociedade civil, como a Igreja e as organizações comerciais?

Eles já estiveram mais bem posicionados em relação à reforma urbana, isso há uns 15 anos. Acho que houve um retrocesso, o que me deixa muito aborrecido. É meio contraditório, porque, se no Congresso nós avançamos, na sociedade civil parece que houve um retorno. De modo geral, posso dizer que partidos que supunha terem uma posição bem mais avançada estão praticando uma política urbana mais atrasada do que eu esperava. Há também o que chamo de aliança estranha. Ou seja, movimentos sociais que reivindicam uma reforma urbana que combata a especulação imobiliária, mas se aliam aos especuladores para obter anistia. Isso acontece muito nos mananciais.

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A impressão que se tem é que abrir uma avenida ou fazer uma ponte em São Paulo se tornou uma disputa política complexa. Qual sua opinião em relação ao Rodoanel?

Eu sou a favor do Rodoanel. Creio que a insistência do governo estadual em construí-lo no manancial gerou uma resistência muito grande dos ambientalistas. Porque ele produz uma valorização a seu redor que expulsa as pessoas com menos renda. Elas serão jogadas para longe, e isso significará a ocupação do manancial. Eu imagino que a construção nesse local se deva à aliança estranha da qual falei. Os especuladores imobiliários que compraram áreas em volta do futuro traçado agora o defendem com unhas e dentes para manter esse jogo.


 
O que o senhor acha das soluções enunciadas para recuperação do Centro da cidade? Surtirão efeito?


A melhora do Centro, do ponto de vista urbanístico, é necessária porque a região tem uma qualidade urbanística baixa. O Vale do Anhangabaú, por exemplo, não é nem bem uma praça nem bem um parque. Para ser uma praça, teria de ter um ambiente que propiciasse a permanência das pessoas ali. Para ser um parque, teria de ter muito mais verde. Ou seja, o projeto tem de ser refeito. A Praça da Sé, da mesma forma, não está bem resolvida como espaço de passagem e de lazer, acho que pode ser melhorada. A Praça da Bandeira não teve um plano urbanístico, aquilo é um grande emaranhado de passarelas, também acho que pode ser melhorada.


Fonte: http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas

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