terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Amélia Panet, Patrícia Alonso e Sheila Freire

O conforto do ambiente construído e sua acessibilidade - Uma experiência no curso de arquitetura e urbanismo do UNIPÊ
ALONSO,Patrícia (1); FREIRE, Sheila (3); PANET, Amélia (2)

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Resumo
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A experiência de ensino que relatamos nesse artigo faz parte do desafio necessário de conscientizar e capacitar toda uma nova geração de profissionais, educando-os e contribuindo no desenvolvimento das ferramentas e valores para a transformação, e para a solução de problemas, que tanto afligem a nossa população, no que cabe a profissão de arquiteto e urbanista. Procura conscientizar os alunos com relação à responsabilidade social que o arquiteto possui no desenvolvimento da cidade, e tem o objetivo de mostrar-lhes a importância de se projetarem espaços que atendam às condições de acessibilidade. Através da experiência vivenciada pelos alunos, a acessibilidade passa de variável abstrata do projeto arquitetônico para a condição de realidade a ser tratada no processo projetual.
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Palavras Chaves
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Acessibilidade, Mobilidade, Experiência Pedagógica, Universal Design
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Considerações Teóricas
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O ensino da arquitetura hoje passa por uma série de reflexões sobre as atribuições e os desafios do profissional arquiteto e urbanista, frente às transformações da nossa sociedade desigualmente moderna, na tentativa de contribuir para a formação de um profissional pleno de valores e posturas, além dos tão necessários conhecimentos e habilidades. Essa consciência social e ética deve estar presente como princípio norteador de qualquer projeto pedagógico na formação de profissionais que possuam um compromisso com questões pertinentes à produção projetual das nossas cidades, com a justiça social, e sensíveis às diferenças e dificuldades humanas.
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Para nós, já se passou o tempo em que arquitetos acreditavam na capacidade de melhorar o mundo com suas belas formas, produções de obras de arte. A arquitetura não deve ser superior às necessidades humanas.
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É um desafio necessário conscientizar e capacitar toda uma nova geração de profissionais arquitetos e urbanistas, educando-os e contribuindo no desenvolvimento das ferramentas e valores para a transformação, e para a solução de problemas, que tanto afligem a nossa população, como a falta de moradias, de escolas, de postos de saúde, de destinos adequados para os dejetos, de presidiárias, de espaços públicos de lazer e cultura, enfim, de cidades que proporcionem uma maior qualidade de vida à população residente, tornando possível sua sustentabilidade e o futuro das gerações vindouras, como nos é de direito pelo ´Estatuto da Cidade` e, sobretudo, respeitando o direito de ir e vir de todo cidadão com relação à acessibilidade externa e interna a todas as edificações e diante de todas as diferenças e situações humanas.
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Esse desafio torna-se ainda maior com relação ao ensino da arquitetura devido à característica multidisciplinar da profissão de arquiteto, que incorpora atributos e conhecimentos de outros campos cognitivos, na intenção de conseguir sua expressão máxima. Dentre esses atributos e conhecimentos, estão presentes as questões socioculturais imprescindíveis ao exercício responsável da profissão.
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A experiência de ensino que relatamos nesse artigo faz parte desse desafio e procura conscientizar os alunos com relação à responsabilidade social que o arquiteto possui no desenvolvimento da cidade, e tem o objetivo de mostrar-lhes a importância de se projetarem espaços que atendam às condições de acessibilidade. Entenda-se, aqui, por acessibilidade a “possibilidade e condição de alcance para utilização com segurança e autonomia de edificações, espaços, mobiliários e equipamentos urbanos" (NBR 9050).
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Entretanto, existe uma parcela considerável da população que, por algum tipo de restrição, possui sua mobilidade reduzida e, por conseguinte, sua acessibilidade limitada. Encontramse
nesse grupo os idosos, obesos, mulheres grávidas e os portadores de deficiência transitória ou permanente.
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O fato estimulador dessa experiência se deu com os resultados do último censo do IBGE, em 2000, onde foram incluídas pela primeira vez informações sobre esse último grupo. A porcentagem da população com essas características, no país, foi de 14,45%, ou seja, 24,52 milhões de habitantes são portadores de algum tipo de deficiência (física, auditiva, visual ou mental). Se incluíssemos, nessa estatística, os idosos, os obesos, as gestantes, esse número se elevaria para mais de 39,28 milhões de pessoas, ou seja, mais de 23,13% da população.
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O fato que mais nos inquietou foi saber que o Estado com o maior índice de ocorrência, de acordo com esse censo, é a Paraíba, com 18,74%, sendo que na capital, João Pessoa, dos 600 mil habitantes, 14,85% são portadores de deficiência, o que corresponde a 88.789 mil habitantes. Esses números causaram uma certa surpresa pela sua grandeza e diversidade, mas principalmente, por nos questionar sob o fato de: onde estão essas pessoas, porque elas não são vistas? Isso abre um parêntese para algumas considerações sobre a cidade de João Pessoa e seus moradores, necessário para a compreensão do contexto em que se insere a proposta pedagógica.
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Sobre a cidade de João Pessoa
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João Pessoa é uma cidade que, apesar do seu franco crescimento, ainda guarda, em alguns dos seus recantos, aspectos das pequenas cidades. Estes, nós vemos como uma qualidade diante do caos urbano em que estão mergulhadas algumas das cidades brasileiras. No entanto, sabemos que apesar de suas virtudes, João Pessoa sofre com o descaso acumulado de várias gestões, que fecham os olhos para os problemas mais simples, aqueles mais evidentes como: saneamento básico, transporte público, habitação digna para todos e espaços públicos adequados para o convívio. A cidade enfrenta um processo visível de privatização de seus espaços públicos, seja com a colocação de bancas de jornal e barracas das mais diversas atividades em passeios públicos, seja com a invasão de praças e das nossas tão esburacadas calçadas pelos automóveis e placa luminosas cada vez maiores. Esse descaso é, também, fruto da tolerância dos seus moradores, que não possuem uma consciência arquitetônica que, necessariamente, não precisa ser adquirida numa escola de arquitetura, mas apenas implica no discernimento para exigir os seus direitos, escolher e selecionar o que serve e o que não serve para a sua vida e para a sua cidade e, sem dúvida, na responsabilidade com os deveres do cidadão.
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Há práticas em outros países que visam educar para a “vida urbana” e é esse, mais um dos princípios que norteiam o curso de arquitetura dessa experiência. Essas práticas são decorrentes de uma visão da arquitetura e do urbanismo como conhecimentos de utilidade pública. Essa visão traduz a grandiosidade do campo de atuação do profissional arquiteto e a nossa responsabilidade enquanto educadores e formadores de opinião.
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Entretanto, enquanto profissionais dessa área, sabemos que o desenvolvimento de uma cidade não é tarefa apenas de uma categoria de profissionais, mas de um conjunto de decisões democráticas, onde o arquiteto e urbanista deve contribuir diretamente, não se omitindo frente aos problemas urbanos, entre eles a tarefa de tornar a cidade acessível. É importante, pois, conscientizar o futuro arquiteto da sua responsabilidade frente ao desenvolvimento de sua cidade, para que ele não olhe apenas para o seu pequeno universo, fazendo projetinhos e fachadinhas para deixar a sua marca, ignorando o fato de que está fazendo um pedaço da cidade, e que, qualquer intervenção por menor que seja, interfere na paisagem e no comportamento dos seus habitantes. O fato de não encontrarmos, na cidade de João Pessoa, essa quantidade significativa de pessoas portadoras de alguma necessidade especial, desperta para as razões dessa realidade e de como nós, arquitetos, podemos contribuir para transformá-la. Essa transformação é lenta, pois não envolve apenas questões técnicas de design e de infra-estrutura na adequação do espaço público e privado em atender suas necessidades específicas. Não se trata apenas de calçadas inexistentes ou com revestimentos inadequados, de existência de obstáculos nos passeios públicos ou de falta de rampas de acesso e de faixas de travessias, mas, pressupõe toda uma conscientização, educação e conhecimento sobre as diferenças humanas, seus direitos, deveres e o exercício da cidadania para que não perdure essa situação de exclusão social.
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Onde está o problema?
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No que diz respeito à legislação que garante o direito de ir e vir de todo cidadão sem distinção, esta já é suficiente e existe nos diferentes níveis, em forma de leis, decretos e/ou portarias a exemplo da Lei Federal nº 10.098/2000 que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiências ou com mobilidade reduzida, mediante a supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios e nos meios de transporte e de comunicação e, também, o Projeto de Lei do Senado nº 6, de 2003 que institui o estatuto do portador de deficiência.
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No entanto, o obstáculo maior parece ser a inexistência de uma consciência desse problema, por todos os cidadãos, e de como superar essa barreira sócio-cultural.
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Reforçando esse aspecto, segundo PRADO (2001), a maioria dos ambientes construídos apresenta barreiras visíveis e invisíveis. As barreiras visíveis são todos os impedimentos concretos, entendidos como a falta de acessibilidade dos espaços e, as invisíveis encontram-se na forma de como as pessoas, na maior parte das vezes, representadas pelas suas deficiências e não pelas suas potencialidades, enfrentam o problema e são vistas pela sociedade.
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É possível que a ausência de uma preocupação constante com as questões de mobilidade e acessibilidade nos projetos de arquitetura e urbanismo decorram da herança dos ideais modernistas, que pregam o racionalismo gerando uma arquitetura insensível às necessidades humanas. As cidades modernistas foram projetadas de “aviões”, em escalas monumentais, com os arquitetos posicionados à distância, possivelmente, abstraídos de detalhes necessários ao convívio humano e ao uso democrático de seus espaços.
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Assim sendo, os profissionais de arquitetura precisam rever sua maneira de conceber os espaços, atualizarem-se tecnologicamente e renovarem seus conhecimentos, devendo levar em consideração a diversidade dos usuários nos espaços construídos, buscando atender às suas necessidades.
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Nesse sentido, entendemos que o Universal Design é um caminho que atende, ou busca atender, a esses anseios, na medida em que tem por princípio planejar, projetar e construir o entorno físico considerando o envolvimento das necessidades de qualquer pessoa. (UBERNA, 1997).
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É importante lembrar, segundo Cohen e Duarte, que os espaços construídos não devem ser adequados apenas às pessoas com deficiências, pois isso poderá aumentar a exclusão espacial e a segregação desses grupos, mas, sobretudo, utilizar-se de medidas técnico-sociais destinadas a acolher todos os usuários em potencial. (COHEN e DUARTE, 2003).
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Relato da Experiência e de sua Metodologia
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Tais considerações nos levaram a desenvolver, desde 2002, na disciplina Conforto Ambiental I, localizada no 4° período do curso de Arquitetura e Urbanismo do UNIPÊ, uma experiência pedagógica cujo objetivo é conscientizar os alunos com relação ao papel do arquiteto e urbanista nesse verdadeiro processo de democratização espacial, como um profissional que deve considerar o usuário como agente participativo no seu processo projetual. O aluno é incentivado a analisar, criticamente, a qualidade dos espaços construídos; avaliar seus níveis de acessibilidade e de mobilidade; compreender a importância desses aspectos para a qualidade de vida da população; conhecer a legislação existente sobre o assunto; e propor soluções viáveis às questões de acessibilidade no ato de projetar.
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A metodologia utilizada consiste em fazer os alunos vivenciarem, concretamente, situações do dia a dia, em diversas áreas da cidade, simulando mobilidade reduzida ou deficiência, aliando a essa experiência uma posterior e ampla discussão sobre o que é acessibilidade; qual a sua abrangência; sua normativa; como a sociedade a compreende; como tais questões se colocam atualmente para a cidade de João Pessoa; e sobre qual a responsabilidade do arquiteto e urbanista frente a essa problemática.
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O método utilizado consiste na seguinte seqüência de passos:
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1. Escolha de um espaço ou edificação de uso público existente na cidade, considerando-se a possibilidade de desenvolvimento, no local, de atividadesvariadas e corriqueiras, tais como: deslocamento; uso de telefone público; travessia de ruas; utilização de sanitários e de bebedouros; trânsito entre desníveis;
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2. Visita ao local escolhido. Os alunos, acompanhados pela professora, visitam o local para nele se deslocarem e realizarem atividades, fazendo uso de cadeiras de rodas, muletas e de vendas nos olhos, ou simulando situações de mobilidade reduzida tais como carregar pacotes, ou empurrar carrinhos de bebê;
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3. Elaboração de relatório. Os alunos elaboram um relatório, analisando a experiência, descrevendo as sensações vividas e identificando os elementos construídos que possam dificultar ou auxiliar a realização de atividades.
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Os problemas mais freqüentemente encontrados são: rampas com inclinações inadequadas; portas com largura inferior a 80cm; sanitários mal adaptados aos portadores de deficiência ou de mobilidade reduzida; telefones públicos com altura inadequada para cadeirantes; ausência de pisos tácteis para deficientes visuais.
Quanto às sensações experimentadas durante a atividade, as mais relatadas são: desorientação; insegurança; impotência; falta de autonomia; incômodo com o olhar constante das pessoas; indignação com os arquitetos e com os profissionais envolvidos na execução do projeto;
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4. Discussão em sala de aula. Expostas as impressões e constatações resultantes da experiência, a turma, junto à professora, constrói o conceito de acessibilidade, discute sua importância, estuda a legislação vigente e é apresentada ao conceito de Universal Design;
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5. Com o conhecimento apreendido na atividade, realiza-se a adaptação de uma área edificada (banheiros, balcões, estações de trabalho, etc.) às condições de acessibilidade requeridas pela normativa e essenciais para o uso integral, democrático e confortável do espaço construído.
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Fotos 01 e 02 - Alunos vivenciando a experiência da travessia de ruas com mobilidade reduzida

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Foto 03 – Dificuldades encontradas no acesso aos equipamentos urbanos

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Foto 04 – Aluna relatando sua experiência em programa de tv para conscientização da população
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Fotos 05 e 06 – Sensação de insegurança e impotência vivenciadas pelos alunos
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Fotos 08 e 09 – A aluna percebe que os equipamentos adaptados não funcionam

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Conclusão
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É importante dizer que a experiência relatada não é isolada, a ela somam-se outras, como a de Cristiane Duarte e Regina Cohen, realizada no curso de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, e a pesquisa de Angélica Pinto et al. no Departamento de Design da UFPE.

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Com ela, o aluno transforma a sua percepção da relação do usuário com o projeto arquitetônico. Na medida em que se coloca na sua posição, com as suas possíveis limitações e situações previsíveis, o aluno passa a perceber mais atentamente que o usuário é o motivo maior do ato de projetar, pois é para ele, e para o desenvolvimento de suas mais diversas atividades, que os espaços são projetados e construídos. O que antes poderia ser visto como uma variável abstrata do projeto arquitetônico passa à condição de realidade a ser tratada no processo projetual.

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Com efeito, é com satisfação que observamos que, após cursar a disciplina de Conforto Ambiental I, os alunos têm demonstrado sensibilidade e preocupação bem mais apuradas, no que diz respeito à acessibilidade como variável imprescindível de seus projetos arquitetônicos e urbanísticos.

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Despertamos o aluno para uma preocupação ausente no processo de formação de muitos arquitetos, que é a concepção de edifícios e espaços urbanos acessíveis, que proporcionem autonomia e mobilidade a um número cada vez maior de pessoas, mesmo aqueles com mobilidade reduzida ou portadores de necessidades especiais. Dessa forma, poderemos ter projetos que atendam aos princípios do desenho universal, onde o usuário final interaja de forma confortável e segura com o espaço construído, e formar cidadãos conscientes das diferenças humanas, do necessário e positivo que é conviver com elas e da sua responsabilidade face a incorporação de tal diversidade à vida urbana.
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Bibliografia
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DUARTE, Christiane Rose, COHEN, Regina. (2003) “Methodologies d´Enseigment de l´Architecture Inclusive: Creant des Outils pour la Qualite de Vie pour Tous”. News Sheet 65. European Association for Architectural Education. Association Europeenne pour l´Enseignement de l´Architecture. Leuven, 2003.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, Censo 2000.
NBR 9050. “Acessibilidade de Pessoas Portadoras de Deficiências a Edificações, Espaço, Mobiliário e Equipamentos Urbanos” – Rio de Janeiro ABNT, 1997.
PINTO, Angélica Leite Peixoto et al. (2002) “Ergonomia e Arquitetura: Contribuição da Ergonomia na Formação Acadêmica/Profissional do Arquiteto. ABERGO 2002. In: Anais ABERGO 2002. Recife,2002.
PRADO, Adriana Romeiro de Almeida (2001). Ambientes Acessíveis, In Município acessível ao cidadão, São Paulo: CEPAM, 2001.
UBIERNA, José Antonio Juncá (1997), Diseño Universal: Factores Claves para la Accessibilidad Integral, Castilla-La Mancha: Ed. COCEMF, 1997.

(1) Profa. Mestre Coordenadora adjunta do Curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ) – e-mail: patalonso@ig.com.br
(2) Profa. Especialista do Curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ) – e-mail: sheilaafreire@bol.com.br
(3) Profa. Mestre Coordenadora do Curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ) – e-mail: map2001@terra.com.br
Curso de Arquitetura e Urbanismo - Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ – BR 230 Km 22 – Água Fria – Cep 58053-000-Cx Postal 318 – João Pessoa – PB.
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Um comentário:

  1. E aí pai, pai? Achei muito interessante sua postagem sobre a dificuldade dos deficientes físicos nas cidades. Em breve nos falaremos. Beijo!

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